O projeto parte da larga experiência de pesquisa com patrimônios negros e a memória da escravidão no mundo atlântico da rede Passados Presentes: Memória da Escravidão no Brasil (LABHOI-UFJF-UFF; CLAS-PITT, LEAFRICA-UFRJ), associada ao dinamismo do Grupo de Pesquisa Emancipações e Pós-Abolição em Minas Gerais (GETP-MG), com sede na UFJF, que reúne pesquisadoras/es sobre o tema do racismo e da história e a cultura negra no estado de Minas na área de história, além da antropologia e arqueologia. O caráter inovador das pesquisas do grupo tem colocado em relevo não apenas as heranças africanas na construção de identidades e patrimônios negros mineiros, mas também a importância das interações afro-indígenas na constituição desses patrimônios e da própria negritude em Minas Gerais, gerando a problemática central da pesquisa. O projeto foi contemplado no Edital Humanidades/CNPq, de 2022, tendo sido desenvolvido com este apoio de 2023 a 2025.
Teoricamente, consideramos identidade e cultura negras como processos políticos relacionais. Ao tomar os patrimônios culturais negros reconhecidos ou em fase de reconhecimento em Minas Gerais como locus estratégico de análise, o projeto se propõe a investigar como os detentores dos patrimônios negros mineiros mobilizam e atualizam, em suas memórias e performances, narrativas e experiências da escravização de africanos e indígenas em território mineiro, bem como as experiências de racismo que continuaram a atravessar suas histórias no pós-abolição. Um recente movimento na historiografia brasileira vem produzindo importantes contribuições para a compreensão das experiências negras em Minas Gerais. Pesquisas sobre festas, religiosidades, territórios e cidades, quilombos, associações e clubes, memórias e patrimônios de artistas, músicos e demais detentores de saberes identificados como negros, de matriz africana e/ou afro-indígena, estão sendo produzidas, em grande parte por pesquisadoras e pesquisadores do GTEP-MG, ampliando o entendimento sobre os processos de emancipação e pós-abolição em terras mineiras.
Estudar as interações afro-indígenas e romper com sua invisibilidade memorial e cultural são desafios de pesquisa e motivação para os pesquisadores ora reunidos. O combate ao racismo e o reconhecimento de direitos amplos e irrestritos para a população negra e indígena passam, necessariamente, pela visibilidade, valorização e promoção de seu amplo e complexo legado cultural, costumeiramente estigmatizado e reduzido a um conjunto estereotipado de elementos. A política de preservação do patrimônio cultural brasileiro foi instituída sob a ausência de referências às matrizes africanas e indígenas no conjunto do patrimônio cultural. Fato explicado pelo caráter eurocêntrico e restrito da prática oficial de preservação do patrimônio cultural no país até a Constituição de 1988.
Desde então, a atuação potítica dos movimentos negros e indígenas redefiniram perguntas e narrativas sobre o passado brasileiro, impactando as políticas patrimoniais, a historiografia e suas pautas de pesquisa. Tais iniciativas alargaram noções como resistência e ação política e tornaram visíveis outras narrativas e elementos constitutivos da presença indígena e africana no Brasil, o que tem possibilitado, não sem esforço, a ampliação do reconhecimento dos patrimônios culturais de matriz africana e indígena, a contrapelo do senso comum eurocentrado. Destacamos também os diálogos epistêmicos entre saberes acadêmicos e tradicionais gerados por este movimento. Este projeto abre nova janela de investigação neste sentido ao se propor a pensar as interações afro-indígenas na constituição da negritude mineira, contribuindo também com os mais recentes debates sobre a implementação das leis n° 10639/2003 e no 11645/2008, que tornaram obrigatório o ensino das histórias afro-brasileiras e indígenas nas escolas.
O projeto se estrutura na interação metodológica entre os pesquisadores, o que potencializa o impacto teórico do conhecimento produzido, bem como a divulgação dos resultados alcançados. A metodologia se organiza em dois pilares: história oral assentada em diálogos epistemológicos entre saberes social e culturalmente localizados e a experiência metodológica da micro-história e da história vista de baixo (vide bibliografia teórica básica). Estes pressupostos resultam nos seguintes procedimentos de pesquisa: 1) História oral com entrevistas semi-estruturadas e genealógicas com os detentores dos patrimônios estudados em um trabalho dialógico de produção compartilhada de conhecimento, registradas e arquivadas em mídia sonora ou audiovisual. 2) Autoetnografia da pesquisa, através de um caderno de campo e de seu registro visual ou audiovisual, buscando contextualizar a relação entre o pesquisador e os grupos pesquisados. 3) Pesquisa nominativa sobre os sujeitos pesquisados, nos marcos consagrados pela micro-história, nos acervos históricos locais disponíveis, em arquivos privados, religiosos e governamentais (municipais, estaduais, etc). 4) Construção de textos acadêmicos e de narrativas de história pública. A rede de pesquisadores tem como problema de pesquisa, sobretudo, as interações afro-indígenas na história e na memória de quilombolas e de detentores de patrimônios negros como reizados, congadas e folias de reis, em várias regiões do estado de Minas Gerais, bem como as relações dessas manifestações e de seus sujeitos com a história da África, do associativismo negro e com as religiões de matriz africana. Ela se faz presente: 1) na região histórica da mineração, alvo do impacto da imigração maciça de colonizadores portugueses e escravizados africanos sobre áreas indígenas no século XVIII, em torno de Ouro Preto e Mariana, 2) nas regiões que se conectaram mais diretamente com a imigração forçada da última geração de africanos e com o processo de etnocídio e destribalização dos grupos indígenas que ainda ocupavam as áreas de ligação entre a região do ouro e os portos do Rio de Janeiro e de Salvador, no século XIX, como o Sul de Minas, o Campo das Vertentes, a Zona da Mata e os Vales do Mucuri e do Jequitinhonha, 3) e em diversas cidades que receberam migrações negras no pós-abolição, com destaque para a capital, Belo Horizonte e a cidade de Juiz de Fora. Os resultados da pesquisa de base vão alimentar o banco de dados colaborativo Afro-Brazilian Heritage, alargando possibilidades de análise comparada a partir de diferentes variáveis. Serão também divulgados na Plataforma Digital do projeto, tornando-se acessíveis aos detentores, alguns deles pesquisadores da rede, permitindo sua utilização na produção de material paradidático, em museus de território, exposições e aplicativos de memória. O diálogo epistemológico entre saberes se coloca como ferramenta metodológica e desafio teórico da pesquisa.
EQUIPE GESTORA DO PROJETO
Hebe Maria Mattos – (UFF/UFJF) – Coordenadora-Geral
Ana Luzia Moraes – (Detentora/Pesquisadora)
João Paulo Lopes (IFSULDEMINAS)
Josemeire Alves Pereira (UNICAMP)
Lívia Nascimento Monteiro (UNIFAL-MG)