A atual capital de Minas Gerais foi inaugurada em 12 de dezembro de 1897 e está situada na região central do Estado, ocupando uma área urbanizada de 274,04 Km2. A cidade, projetada no contexto da intensificação dos debates sobre a transferência da capital do Estado, de Vila Rica para outra localidade, em função do projeto de modernização econômica intentado pelas elites políticas do Estado, à época, foi a segunda das quatro capitais planejadas, no país, sendo a primeira destas a ser construída. Os trabalhos da Comissão Construtora da Nova Capital, conduzida pelo engenheiro paraense Aarão Reis, transformaram profundamente parte do território do antigo povoado setecentista do Curral Del Rei, sobre o qual instalou-se a Cidade de Minas, que foi depois nomeada de Bello Horizonte – por referência ao nome que se legara ao arraial, após a instituição da República no Brasil.

Trata-se, pois, de uma capital planejada no contexto do imediato Pós-Abolição – a despeito do silêncio da historiografia da cidade a respeito. E isto merece atenção, considerando-se os princípios higienistas e positivistas que guiaram o planejamento e o ordenamento do novo espaço urbano – concebido para ser “a noiva do progresso”, “a capital da República”, um signo, enfim, da modernidade e do progresso desde então -, e que resultaram em uma cidade fortemente segregada em termos raciais. Assim, a população atual de Belo Horizonte, constituída, segundo o Censo de 2022, é constituída por 2.315.560 pessoas, das quais, de acordo com o Censo de 2022, autodeclaram-se pretas 13%, e pardas 42,6% – uma maioria, de gente negra -, que está distribuída, contudo, longe das regiões enobrecidas pela gentrificação da cidade (Centro-Sul e Pampulha, principalmente) – e com concentração de pessoas pretas em localidades cada vez mais distantes dessas áreas.

A presença de gente africana e sua descendência produzindo o território foi registrada nos Mapas de População, desde os tempos da então freguesia do Curral Del Rei. No século XIX, a soma da população descrita como “preta” e “parda” (ou “mulata”), independente do aumento ou queda da população total, chegou a perfazer cerca de 70% a 80% (PEREIRA, 2019, p. 34-90). No Recenseamento do Império do Brazil, de 1872, das 5.463 pessoas que compunham, então, a população da freguesia de N. Sra. da Boa Viagem do Curral del Rei, 5.027 eram livres e 436 escravizadas. Dentre as livres, observa-se uma maioria de gente preta e parda: 1449 mulheres pardas, 1212 homens pardos, 376 mulheres pretas e 336 homens pretos, notando-se a predominância dos considerados pardos – especialmente das mulheres pardas. Já dentre as/os escravizadas/os, os 155 homens pardos predominavam, sendo seguidos pelas 111 mulheres pardas, 86 homens pretos e 84 mulheres pretas.



Não temos dados do perfil da população do lugar, quando da construção da Nova Capital. Mas é provável que a grande maioria de quem hoje denominaríamos como negras fizesse parte das famílias que habitavam as “cafuas” situadas nos limites dos interesses da Comissão Construtora e que, consideradas insalubres, foram destruídas sem direito a indenização – ao contrário do que ocorreu com os habitantes brancos que conseguiam demonstrar sua propriedade sobre terrenos e casas de alvenaria. Testemunha daqueles tempos, o Pe. Francisco Dias Martins – ele próprio um homem negro – registrou em seu livro Traços Históricos e Descriptivos de Bello Horizonte, de 1897, descrevia o desespero dos que eram expulsos de suas terras por Aarão Reis:
CITAÇÃO:
Calafate e Piteiras foram o asilo da pobreza, e hoje estão quase transformados em dois arraialetes.
De um misto de sentimento e de esperança foi-nos a assistência do êxodo da antiga população para os lugares supra-indicados. Movemo-nos à compaixão por vermos as dificuldades com que lutavam os pobres, para de novo se estabelecerem, por vermo-los, muitas vezes, com as lágrimas nos olhos, se queixarem da sorte, pelas peripécias e amarguras porque iam tão bruscamente passando.
Era uma cena triste e comovedora essa da emigração da maioria dos habitantes para outras paragens mais recônditas e solitárias de seu querido Curral D’El-Rei!
Piteiras é o nome da Fazenda adquirida por uma dessas famílias negras, contudo, e que constitui o atual território do Quilombo dos Luízes – um dos cinco reconhecidos como tais, na cidade. Em Luízes – ou na terra dos negros das Piteiras, como se identificavam as/os quilombolas, os modos de vida do Curral Del Rei de antes da chegada da cidade se mantiveram por muito tempo, em contraponto à modernidade e ao progresso excludentes da Nova Capital. No antigo arraial, caracterizado por uma economia agrária de subsistência, a relação que a maioria de sua população, de origens predominantemente Bantu, guardava para com a terra era provavelmente similar à que descreve Bunseki Fu-Kiau, n’O livro africano sem título: cosmologia dos Bantu-Kongo, (2024 [2001], p. 114-115):
CITAÇÃO:
O que os/as Bantu-Kongo, Luba, Mongo, Nyarwanda, Zulu etc. constituem na sua vida diária é um sistema [kimpa/fu] pelo qual a terra, fonte de felicidade e bênção a toda vida terrestre, não pertença aos indivíduos, senhorios ou ao Estado, como se verifica, respectivamente, no caso do sistema capitalista e do comunista, mas à essencial comunidade fundamental, kânda, e todos os seus membros, sejam eles pobres, ricos, eruditos, estúpidos, jovens, anciãos. Todos eles dispõem de inteiro acesso à terra inalienável. Conforme um provérbio kongo dia: “A terra da comunidade é nossa vida” [n’toto wa kânda ni môyo èto].
É também o Pe. Dias que, ao nos informar sobre as principais festas do Curral Del Rei, no advento da construção de Belo Horizonte, acaba por nos indicar a força das culturas africanas nelas imbricadas:
CITAÇÃO:
As festas principaes da freguezia eram: – a da Padroeira a 15 de agosto; a do Divino, a de Santa Efigenia, a de S. Sebastião, a de Santo Antonio, a do Reinado do Rosario, e as solemnidades da Semana Santa. (…) O Reinado fazia-se regularmente na primeira dominga de outubro, dia este de grande gala para os pretos, por ser o de sua festa predilecta. Neste dia ostentavam-se pelas ruas garbosos, e alegremente dançando ao som cadencioso de seus tambores, de seus adufes e de suas sambucas, produzindo fortes e vibrantes pandorgas – tudo em honra e louvor da Senhora do Rosario, como diziam elles. Na capella resava-se ou cantava-se a missa; e à tarde, a ceremonia da deposição dos reis velhos com seu estado maior, e a eleição dos novos, que deveriam exercer no anno futuro, etc., etc. As festas de S. Sebastião e de Santo Antonio nem sempre se faziam, e às vezes eram feitas com alguma irregularidade de tempo. As do Divino e de S. Efigenia eram feitas em tempo próprio; ultimamente, porem, por força das circumstancias, que dificultavam frequentes vindas de música e de padres, passaram a celebrar-se unidas à da Padroeira, que sempre se fez no dia 15 de agosto. (DIAS, 1987 [1897], p. 49)
Como já é possível observar, a despeito do que sugeria certo discurso historiográfico ao postular uma suposta inexistência de fontes sobre pessoas negras para a história de Belo Horizonte, conseguimos identificar uma diversidade de registros que nos permite da vida dessas pessoas, desde as origens coloniais que marcam a produção do território. No Curral Del Rei, além da Irmandade do Rosário dos Homens Pretos, responsável pela capela do Rosário que foi destruída em 1895, durante as obras da construção da Capital; viveu gente como Francisca Correia (Mina), liberta e Manoel da Rocha (Benguela) – em meados do século XVIII, Francisca era sacerdotiza de um calundu que se dava na região que divisava as atuais Pampulha e Venda Nova.

Nos registros de liberdade disponíveis temos notícia das estratégias de conquista da liberdade por gente como Gertrudes, parda (1836), Clemência, crioula (1837), Quintiliano, crioulo (1843), Fortuoza (1853), Caetano, Africano, mais de 60 anos (1854), Joana Mina (1867), Silvério, mulato (1867); Severa, crioula (1843 – condicional), Joaquina, crioula (1857 – alforria condicional), Guilhermina Parda, Rogério Pardo, Cláudia Crioula, Rita Mestiça e às/aos africanas/os João Mariano Africano, Maria do Céu, Germano, Joanna (libertos em 1860, mas Carta de liberdade registrada em 1864 – alforria condicional).
Em 1831, “Joaquina, crioula – Rita parda – Cassiana parda – Rufino – pardo – Felicidade creoula – Antonia creoula – José Creoulo” herdaram de sua então senhora Antônia Gertrudes da Fonseca, as terras da Fazenda Bonsucesso que lhe cabiam. Parte da ascendência do Quilombo de Luízes provém também desta comunidade que, em 1916, era constituída por 79 pessoas filhas, netas, bisnetas dos 07 que haviam herdado a fazenda. E estavam em luta na defesa do seu direito àquelas terras.
Em 1895, Dona Maria, denominada “Maria Papuda” e, atualmente, homenageada pelos movimentos de moradia locais de “Maria do Arraial”, foi uma das pessoas que teve sua cafua destruída pelas ações de Aarão Reis e a Comissão Construtora. Sua morada era localizada nas imediações do atual Palácio da Liberdade e Circuito Liberdade. Ela foi negativamente transformada em lenda urbana – assim como outros personagens negros da cidade – pois, teria decretado a infelicidade de quem fosse morar no lugar, em decorrência da expulsão que ela estava sofrendo: coincidência ou não, alguns governadores do Estado faleceram nas dependências do Palácio da Liberdade.
Encontramos informações referentes aos antigos habitantes negros do Curral Del Rei também no Livro de Registros do Cemitério Municipal que nos diz sobre, dentre outas/os:: Manoel Lino, africano, 100 anos; Raimundo de Souza, preto 40 anos; Lauriano Nogueira, preto, 73 anos; Eugênio, preto, idade não informada; Justino de tal, preto (1902); Miguel, preto, 56 anos e Isidoro, Africano, 120 anos, falecidos, respectivamente em:, 1898, os dois primeiros, 1899, 1901, 1902, 1900 e 1902.
Aos que ali estavam, iam juntando-se milhares de migrantes negras/os de outras regiões de Minas e mesmo de outros estados do país, desde o advento da construção da Capital, em fins do século XIX. Muitas pessoas, para além dos operários empregados nas obras de construção da cidade, vieram acompanhando antigos senhores/as e/ou empregadoras/es de Ouro Preto/Vila Rica que constituíam o corpo de profissionais liberais ou da administração governamental – foi o caso da família de Dona Efigênia, Mametu Muiandê, sacerdotisa do Kilombo Manzo Ngunzo Kaiango, cuja mãe veio acompanhando a família de um militar de Ouro Preto. Mas a cidade, que seguia em obras, século XX adentro, continuou atraindo esta população de migrantes, desde então, interessados pelas promessas de vida melhor em termos de acesso à saúde e empregos variados – a despeito da precariedade que era também característica à vida da gente negra livre em muitas regiões das Minas, desde muito antes de 1888.

CITAÇÃO:
(…) na alameda à direita de quem ia rumo ao Palácio, caminhavam rapazes e moças de família; na esquerda, que passava ao pé do coreto, criadas e soldados de polícia. Uma rua central, em meio a renques de palmeiras-imperiais, separava sociedade e plebe; democráticas as roseiras floriam indiscriminadamente do lado preto e do lado branco. (…) Depois da retreta, que acabava às nove da noite, as mulatas desciam para outro footing, o da Avenida, e dali iam para cinemas-poeira ou sumiam com os namorados pelo Parque. (ANJOS, Cyro dos. A menina do sobrado. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979, p. 238.)
E, a despeito do fato de a cidade que já se inaugurava racialmente segregada, seguir negligenciando o direito da gente negra e indígena a ela, essas populações se fazem presentes, subvertendo as lógicas excludentes e, ao lutar por direitos que garantam o bem viver coletivo, seguem participando da construção da cidadania no país. As lutas em torno do direito à memória integram, cada vez mais fortemente, seus projetos. Seguem, em honra aos que aqui chegaram, por conta da violência do tráfico transatlântico e da escravidão e, contra toda sorte de negação de sua humanidade, forjaram como foi possível a vida legada às gerações do presente.
REFERÊNCIAS:
ANJOS, Cyro dos. A menina do sobrado. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979.
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BORSAGLI, Alessandro. Arraial de Bello Horizonte: a Ruralidade da Nova Capital de Minas Gerais. Belo Horizonte: Clube dos Autores, 2019.
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FU-KIAU. Kimbwandènde Kia Bunseki. O livro africano sem título: cosmologia dos Bantu-Kongo. [Tradução e nota à edição brasileira: Tiganá Santana]. 1a. ed. Rio de Janeiro: Cobogó, 2024 [2001].
FUNDAÇÃO MUNICIPAL DE CULTURA. Salve Maria. Memória da religiosidade afro-brasileira em Belo Horizonte: Reinados negros e Irmandades do Rosário. Belo Horizonte: Fundação Municipal de Cultura, 2006.
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PEREIRA, Josemeire Alves. Para Além do Horizonte Planejado: racismo e produção do espaço urbano em Belo Horizonte (séculos XIX e XX). 2019. Tese (Doutorado em História Social). Universidade Estadual de Campinas. Campinas, SP, 2019.
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