Por: Silvia Brügger e Bruna Inês Carelli Mendes
HISTÓRICO:
A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de São João del Rei foi fundada em 1708 e sua primeira capela data de 1719, congregando fiéis a esta devoção, em especial, escravizados, libertos e seus descendentes. A igreja atual teve sua construção iniciada em 1751. A irmandade abrigou diversas devoções negras, além de Nossa Senhora do Rosário, Santo Elesbão, Santa Efigênia, São Benedito, Nossa Senhora dos Remédios e Santo Antônio de Categerona. Embora na associação achem-se filiados escravizados e libertos de diversas procedências, as clivagens étnicas se manifestavam nas devoções sufragadas. Além disso, no interior da irmandade constituiu-se pelo menos uma congregação étnica, na virada do século XVIII para o XIX: a autointitulada “Nobre Nação Benguela”, que em 1803, adquiriu casas próprias, constituídas como o “Palácio Real de toda Nobre Nação Benguela”, na qual podiam se reunir seus membros, praticar rituais próprios e guardar os apetrechos de sua corte, formada por duques, marqueses, reis e rainhas. Nessa Irmandade, assim como em muitas outras em diversas regiões, realizavam-se festas anuais em louvor à Senhora do Rosário, com a presença de reis, rainhas e suas cortes, remetendo a práticas africanas e europeias, acompanhadas por cortejos com músicas e danças. Os cargos de reis e rainhas aparecem definidos no Compromisso da irmandade de 1841. No de 1787, o mais antigo existente no arquivo, esses cargos não são mencionados, existindo os de juiz e juíza. Isso não significa que não existissem as figuras reais, mas elas não foram assim nomeadas no compromisso. Em 1896, os termos de rei e rainha foram substituídos pelos de prior e prioriza, por solicitação da confraria. Em uma publicação no Jornal “O Resistente”, de quatro de setembro de 1896, explicava-se a mudança: “porquanto tal dignidade religiosa [reis e rainhas], que em tempos idos se justificava pela existência do Reinado ou Congado – hoje era uma excrescência de significação intolerável.” Percebe-se, portanto, que no final do século XIX, as festas do Rosário organizadas pela Irmandade já não se faziam com a presença dos reinados ou congados. No entanto, em 1909, uma carta assinada pelo prior e pelo secretário da Irmandade solicitavam ao Bispo de Mariana a volta das designações de rei e rainha para os cargos de comando da instituição, “por ser essa a vontade da maioria dos confrades”. A solicitação foi atendida e demonstra a força que a designação real possuía para os irmãos do Rosário. Ao que tudo indica, essas mudanças de designação refletiam disputas no interior da Irmandade, vinculadas às transformações políticas e religiosas do período e a um processo progressivo de branqueamento da associação, expresso, por exemplo, na eliminação dos reinados das festas e à sua compreensão como uma “excrecência intolerável”. Sintomático o fato de a proposta de troca da designação de rei pela de prior ter sido feita pelo próprio rei da confraria na época, o político conservador, redator e dono do jornal “O Arauto de Minas”, crítico contumaz dos chamados “folguedos populares”, deputado na Assembleia Provincial, Severiano Nunes Cardoso de Resende. Se durante muito tempo a Irmandade do Rosário abrigou práticas e crenças religiosas de matrizes africanas, apropriadas e recriadas em uma instituição católica, a partir da segunda metade do século XIX essas formas de devoção e oração precisaram progressivamente buscar outros espaços para se manifestar. Em nome dos avanços da “modernização” e da “civilização”, a cidade e a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário afastaram os reinados para a periferia da cidade.

Praça Embaixador Gastão da Cunha | Centro | São João del Rei, MG | 36300-084 | Brasil |
CITAÇÃO:
“João Machado Alves Fontes e João Tomás Ferreira Guimarães pretos forros que servimos nesta Nobre Nação de Benguela. Certifico e por termos fé em como estas casas é (sic) da Nobre Nação de Benguela declarando que os ditos compradores João Machado Alves Fontes e João Tomás Ferreira Guimarães compraram estas casas com o dinheiro das esmolas que tiramos entre os irmãos forros e cativos e do que está estabelecida por Palácio Real de toda a Nação de Benguela e por os ditos compradores serem forros é que é que estão por cabeça desta compra não porque sejam donos e possuidores como seus porque foi a custa e finta entre todos que consistem os cativos desta nobre nação e não poderão dispor nem vender as ditas casas sem a nação toda junta fazerem Mesa e Haver por bem e para clareza entre todos que achamos presente mandamos lavrar os presente termo que assinaram os da dita nação que se acham presente dado e passado em o Real Palácio. Aos 30 de Novembro de 1803 anos (…).” Termo de Registro de Compra das Casas adquiridas pela Nobre Nação Benguela. Arquivo da Paróquia de Nossa Senhora do Pilar de São João del Rei, Certidões de Missas da Nobre Nação Benguela, 1803.

REFERÊNCIAS:
BRÜGGER, S.M.J e OLIVEIRA, A.J.M. de. “Os Benguelas de São João del Rei: tráfico atlântico, religiosidade e identidades étnicas (séculos XVIII e XIX). Revista Tempo. Niterói: UFF, n.26, 2009.
SANTOS, Luciana M. dos. Reis do Rosário: poder e relações simbólicas na Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de São João del-Rei (cc 1840-1909). Dissertação de Mestrado defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em História da UFSJ. São João del Rei, 2016.
ALMEIDA, Marcelo Crisafuli N. “Folguedos do Povo” e Partida Familiar: A música e suas manifestações populares em São João del-Rei (1870-1920). 2010. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de São João del-Rei. São João del- Rei, 2010.
SOUZA, Daniela dos Santos. Devoção e identidade: o culto de Nossa Senhora dos Remédios na Irmandade do Rosário de São João del-Rei – séculos XVIII e XIX. 2010. Dissertação de Mestrado apresentadas ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de São João del-Rei. São João del-Rei, 2010.