PRECIOSA OURO PRETO: UMA CIDADE NEGRA

Por: Profa. Dra. Janete Flor de Maio Fonseca – DEETE NEABI UFOP /GTEP-MG

flormaio@ufop.edu.br 


No ano de 2005, o Movimento Social Negro de Ouro Preto conquistou uma grande vitória: a substituição da bandeira do município. O antigo estandarte trazia os repugnantes dizeres: PROETIOSVM TAMEM MIGRVM –  “Precioso ainda que Negro”. Foi na  luta de mulheres e homens negros ouropretanos que  se conquistou a troca para PROETIOSVM AURUM NIGRVM – “Precioso Ouro Negro”. A antiga bandeira foi incinerada, e  suas cinzas, com os  dizeres racistas, estão guardadas no Arquivo Público Municipal

Começar este texto descritivo sobre a cidade de Ouro Preto com este episódio recente, porém simbólico, é uma forma de  reconhecer a resistência histórica de seu povo preto. Essa ação significativa, somada à mudança dos dizeres da bandeira, se torna ainda mais importante à medida que nos aprofundamos em sua história, a sua cultura, a suas formas de trabalho, seus modos de vida, sua religiosidade e suas diversas inteligências. A Ouro Preto que descrevemos aqui, não é a cidade convencional da colonização portuguesa, como destacam os livros didáticos ou os materiais de divulgação turística oficial. Focamos nossa atenção para a cidade negra,  que desafia  a  herança portuguesa e celebra suas raízes africanas. 

O Município de Ouro Preto, com seus treze distritos, é o retrato de um Brasil marcado pela presença negra, composta  por escravizados, livres e libertos. Sua ocupação está  ligada à exploração aurífera do século XVIII. No período, colonizadores paulistas invadiram córregos e morros, vitimando os povos originários que habitavam a região, ancestrais dos atuais Borum-Krem, que ainda resistem no local. O “Ouro Preto”,  assim denominado devido à intensa presença de óxido de ferro, foi o atrativo inicial. No entanto, a descoberta do veio aurífero no rio Gualaxo do Sul –  que tem origem na Serra do Espinhaço e avança nos limites do município de Mariana –  incentivou a invasão de portugueses e paulistas. Contudo, a chegada de outros povos estrangeiros, os africanos, deixaria uma marca mais profunda no território. 

Os colonizadores portugueses conviviam em África com  diversos povos desde o século XV. Primeiramente, apresentaram-se como aliados e, assim, conseguiram conhecer de perto seus conhecimentos técnicos e métodos utilizados na mineração. A  descoberta de ouro em Minas Gerais provocou  uma série de mudanças significativas, incluindo o aumento do sequestro e da  escravização  de africanos que foram trazidos  para o Brasil, além da  ocupação do território que incentivou o crescimento urbano, tudo  em função da  exploração do ouro. A Vila Rica de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto foi estabelecida em 8 de julho de 1711, exaltando sua riqueza aurífera. O nome só foi modificado após a independência do Brasil, quando a cidade passou a ser denominada “Imperial Cidade de Ouro Preto”. Quando o  Império caiu, levou consigo o título, e sobrou apenas o atual Ouro Preto. 

 Mas, voltando ao século XVIII, deparamos com o período de maior exploração de ouro e pedras preciosas. Dados indicam que  mais de 100 toneladas de ouro foram retiradas por escravizados das entranhas das terras ouropretanas. Nesse período, a cidade, que foi densamente povoada, superando São Paulo e Nova York, direcionava toda sua produção para o sustento da atividade mineradora. E qual a situação dos negros escravizados? Foram destinados à todas as funções da cadeia de produção. Estavam envolvidos na extração, na coordenação da exploração,  na construção e manutenção das minas, e na implementação de métodos de exploração mineral herdados de suas experiências familiares. Exemplos do saber africano na mineração podem ser vistos hoje  em visitas a antigas minas, como a Mina do Veloso, onde podemos aprender mais sobre técnicas de escoramento, ferramentas, compreensão dos minerais e a competência dos engenheiros e mineradores, todos  negros, que extraíram ouro e outros minerais preciosos do subsolo.  

Negros também estavam presentes  no comércio, nas obras públicas, no serviço de coleta de lixo e animais, na organização das casas, no atendimento de enfermagem  a doentes na Santa Casa de Misericórdia, nas irmandades responsáveis pela construção das célebres igrejas barrocas,  nas bandas de músicas que acompanhavam as missas dominicais, e até mesmo nas peças de teatro encenadas na Casa da Ópera, inaugurada em julho de 1770.  Negros estavam presentes em todos os lugares. 

E circulavam pela cidade, resgatando sua humanidade nas rodas de capoeira em um dos seus  16 chafarizes, locais vistos como perigosos por serem refúgios de negros escravizados, livres e libertos. Também estavam aquilombados nos morros nas fronteiras do município ou em arraiais e distritos mais afastados. O retorno à cidade acontecia nos locais de comemoração, como o “Largo da Alegria”, onde as pessoas se reuniam para fazer música e festejar a liberdade. Contudo,  esses trabalhadores também contribuíram para a construção da cidade, trazendo técnicas de edificação e embelezamento, como  esculturas em pedra sabão, herdadas de sua experiência africana, e eternizadas nas obras do genial artista  Antônio Francisco Lisboa

Homens e Mulheres africanos ocuparam os espaços  urbanos, criando um mundo repleto de memórias  de suas nações africanas, com diversas linguagens e modos de vida. Sua religiosidade é um exemplo disso, já que uniram rituais africanos aos do catolicismo, originando manifestações únicas que ainda hoje adornam  e ocupam as ruas da cidade. São as manifestações culturais como  os reinados, congados e folias. Um conjunto de expressões que integra valores de diferentes culturas e que também desempenha um papel essencial ao preservar e destacar a história e a memória do povo afrodiásporico por meio da oralidade, dos cantos e de seus símbolos. Ouro Preto recebeu, e foi construída por diversos desses povos, inicialmente classificados somente como “Africanos”, oriundos de grupos que, em grande parte, estabeleceram sua identidade étnica no Brasil. Isso se aplicou aos  Angola, Congo, Monjolo, Jeje e Mina. Todos poderiam se reunir no Padre Faria, um dos bairros com maior população negra da cidade, onde está a sede da  Casa de Cultura Negra, um espaço dedicado à valorização da história e da memória negra na região. 

Logo ao lado da Casa de Cultura Negra, está a imponente Igreja Matriz de Santa Efigênia, uma construção do século XVIII. De acordo como  os habitantes de Ouro Preto, a matriz foi erguida com o apoio financeiro de Chico Rei, um nobre africano escravizado que se tornou famoso por conseguir enriquecer e libertar outros escravizados. Em seu interior, a presença africana e afrobrasileira é evidenciada por diversos  símbolos, como  búzios, contas, menções a orixás como Oxum, Iansã e Iemanjá, um Papa Negro e símbolos Adinkras. Os  africanos e seus descendentes, todos herdeiros de Chico Rei, deixaram vestígios da sua presença na cidade ao longo do tempo, é necessário treinar o olhar para reconhecê-los, compreendê-los e absorver suas mensagens. 

Hoje a  Historiografia Brasileira tem um novo desafio, mostrar a História Negra além da violência da escravidão, isso inclui a inserção nos currículos escolares, de acordo com a lei 10.639/03,  da contribuição negra para a  construção do país, suas histórias, personagens, criações, saberes e resistências.

Preciosa é a Ouro Preto forjada e construída por mãos e mentes negras, uma joia preciosa que se revela nas ruas, na arquitetura, e nas conexões da comunidade com o sagrado. Sua alegria se expressa em celebrações populares ricas em africanidades, como o carnaval, as festas juninas, e até mesmo a semana santa. 

O território preto contemporâneo se reinventa por meio do conhecimento compartilhado por agências como o  Coletivo Outro Preto, o “Baile Charme” da garotada esperta do Coletivo Vila Pobre, e nas caminhadas afrocentradas pelos bairros  Antônio Dias, Padre Farias e Alto da Cruz, organizadas pelo Coletivo Palma Preta. As Irmandades religiosas negras continuam a desempenhar seu papel histórico de assistência social à comunidade, como é o caso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. Elas reforçam tanto a conexão com o sagrado quanto a vida cotidiana da comunidade. 

Os terreiros de candomblé e umbanda, as rodas de samba e pagode, bem como os corpos negros que aqui nasceram ou transitam pelas ladeiras e largos, são outros exemplos de quilombos urbanos. Visitar Ouro Preto é também conhecer sua comunidade negra, que se manteve visível e resistente, sem se esconder ou se render. Uma comunidade sempre atenta e envolvida, sendo o protagonista de sua própria história. A mesma comunidade que expressou sua indignação grafitando nos muros: “A cidade é da Humanidade, mas não é da Comunidade”

 Encerramos assim, homenageando mais uma vez o  coletivismo negro de Ouro Preto, pois é desta forma que mantemos viva nossa memória ancestral. Numa narrativa que exalta a importância de Ouro Preto, uma cidade construída pela presença indígena, europeia, e sobretudo, africana e afrodescendente. 


REFERêNCIAS:


FARIA, Juliana Barreto;GOMES, Flávio dos Santos; SOARES, Carlos Eugênio Líbano; ARAÚJO, Carlos Eduardo Moreira de. Cidades negras: africanos, crioulos e espaços urbanos no Brasil escravista do século XIX. São Paulo: Alameda, 2006. 174p.


FERREIRA, Eduardo Evangelista. Patrimônio Mineiro na Serra do Veloso em Ouro Preto – MG: registro, análise e proposição de circuitos geoturísticos interpretativos. Dissertação de Mestrado. Ouro Preto/ UFOP/Escola de Minas /DEP. Geologia. 2017.


FONSECA, Janete Flor de Maio Fonseca. Tradição e Modernidade. A resistência de Ouro Preto à mudança da capital. Ouro Preto: Editora da UFOP,2016. 133pg. 


GRAMNONT, Guiomar. Aleijadinho e o aeroplano : o paraíso barroco e a construção do herói colonial. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2008.


LOPES, Nei. Bantos, Malês e Identidade Negra. 4ª Ed. Revisada. Belo Horizonte: Autêntica,2021. 


RIOS, Ana Lugão; MATTOS, Hebe Maria. Memórias do cativeiro: família, trabalho e cidadania no pós-abolição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. 301 p.


OLIVEIRA, Joana D’Arc de. Da senzala para onde? Negros e negras no pós abolição em São Carlos – SP  (1880-1910). Tese de Doutorado em Arquitetura e Urbanismo. SP: USP, 2015.


SANTOS, Sidnéa Francisca dos. “Pisa Nesse Chão Devagarinho- Memória e Resistência dos Grupos de Congado e Moçambique de Ouro Preto nos últimos 20 anos ( 2003-2023)”. Contagem: Editora Escola Cidadã,2024. 


SODRÉ, Muniz. O Terreiro e a Cidade: a forma social negro-brasileira. Salvador: Secretaria da Cultura e Turismo: Imago, 2002. 182 p. (Bahia: prosa e poesia).

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