Lugares de Memória negra em São João del Rei

Por Sílvia Maria Jardim Brügger e Danilo José Zioni Ferretti


O projeto “Lugares de Memória negra em São João del Rei” nasceu da confluência da trajetória de pesquisa de dois professores do Decis-UFSJ: Sílvia Brügger e Danilo Ferretti. A ele se uniu a pesquisa de mestrado realizadas por Tayane Oliveira sobre o ofício da benzedura em São Jõão del Rei. No início do projeto havia, de um lado, o interesse na história e cultura de afrodescendentes no Brasil, pela profa. Sílvia Brügger. Ao longo de sua formação, no mestrado e doutorado, a professora pesquisou sobre o período escravista brasileiro, em especial, sobre as relações familiares nos séculos XVIII e XIX. No doutorado, abordou a importância da família na região de São João del Rei. Em suas pesquisas, as famílias de escravizados e seus descendentes ocuparam papel relevante. Sua experiência pessoal, ao se mudar para a cidade de São João del Rei, em fins do século XX, trouxe-lhe um incômodo: como entender a consensual afirmação historiográfica de ter sido Minas a maior província escravista do Império – com São João del Rei, cabeça da Comarca do Rio das Mortes ocupando papel de destaque neste cenário – e, ao mesmo tempo, a percepção de ausência manifestações culturais negras na cidade. Aos poucos, a professora foi percebendo a forte presença dessas manifestações em áreas periféricas da cidade, como no bairro do Senhor dos Montes e do São Dimas. Os detentores dessas manifestações culturais já vinham também em luta, buscando afirmar sua presença no centro da “cidade histórica”. A partir de então, a professora passou a desenvolver projetos de extensão e pesquisa, em parceria com grupos da comunidade, como o Raízes da Terra, por exemplo. O problema não era, portanto, a ausência de manifestações negras, mas o seu encobrimento por uma memória e história oficial da cidade. Em pesquisas mais recentes, a professora focou sua atenção aos grupos de congado da região das Vertentes, buscando analisar as memórias da escravidão e da liberdade expressas nas músicas entoadas pelos grupos, bem como a trajetória dos sujeitos e suas relações familiares no pós-abolição. As inquietações sobre a invisibilização da atuação negra na cidade foram o mote para a proposição do trabalho em parceria com o Professor Danilo.

De outro lado, havia o interesse na história da memória e da escravidão, pelo prof. Danilo Ferretti. Desde o doutorado suas pesquisas já se direcionavam para a questão dos usos do passado em geral e especificamente do passado das expedições de escravização de indígenas por colonos paulistas, heroificados a partir do século XIX como “bandeirantes”. Ao longo das últimas duas décadas, tal interesse de desdobrou em pesquisas sobre a relação dos intelectuais oitocentistas brasileiros e a escravidão: das condições de produção e publicação de seus escritos, até o modo como representavam a escravidão, passando pela inserção em redes de sociabilidade e os encaminhamentos futuros que propunham para a instituição. Tratou especialmente da produção literária oitocentista e seu tratamento do tema escravidão. O tema da memória já aí se vislumbrava, pois algumas obras literárias continuaram a ser vendidas no século XX, ajudando a moldar o modo de entendimento da experiência da escravidão de gerações que não a vivenciaram, em casos exemplares de manifestação de uma memória cultural. Disciplinas ministradas na UFSJ consolidaram esse investimento no tema da memória. Nelas eram discutidas tanto os principais referenciais teóricos da área, quanto os temas candentes na sociedade brasileira, destacando-se o da memória da escravidão e sua relação com a luta antiracista contemporânea. Aplicando tal reflexão à cidade de São João del Rei, ficava patente que essa cidade, que se apresenta nacionalmente como “histórica”, pouca visibilidade deu ao protagonismo de homens e mulheres descendentes de africanos.

Por sua vez, Tayane Oliveira teve seu interesse despertado para a prática de benzeção através das memórias de sua avó materna Ana, uma mulher negra, que era benzedeira. A sua dissertação de mestrado é desenvolvida através da História do Tempo Presente, que é um campo da historiografia que se caracteriza pela aproximação  temporal com o objeto histórico, com os sujeitos contemporâneos. E ao trabalhar com a História do Tempo Presente é preciso estar atento para a subjetividade do historiador no exercício da escrita histórica. É necessário explicitar de onde ele fala, para tornar mais transparente seu ofício. Dessa forma, sua escrita historiográfica está marcada por esses dois lugares sociais, o de historiadora e o de neta benzedeira. Esses dois lugares convergem a fim de construir um sentido para as lacunas do passado. 

 As memórias de sua avó sobre a prática de benzedura se juntaram a outras memórias de benzedores da cidade de São João del-Rei. A partir de suas trajetórias de vidas, se propôs uma investigação acerca das práticas curativas, do processo de formação de suas identidades e da transmissão desse conhecimento  através de suas vivências religiosas, de suas memórias e histórias de vida. O estudo é realizado em São João del-Rei, a cidade tricentenária, marcada por tradições e manifestações religiosas diversas nos fornece um substrato para se pensar como as práticas de benzedura se configuram na cidade, e a forma como se dá a relação dos benzedores com seu público.

A oralidade tem um papel essencial na transmissão desses valores e conhecimentos, pois corresponde ao caminho pelo qual os benzedores ingressam por esse ofício de vida.  A tradição oral empregada na prática de benzedura representa um vínculo afetivo com a pessoa que ensinou aos benzedores o ofício da cura. Representa o vínculo com o passado,  com os costumes,  mas também com sua identidade. Além das orações que são repassadas, os benzedores carregam consigo devoções, religiosidades que se manifestam a partir das vivências e visões de mundo desses sujeitos. E a forma como cada benzedeira ou benzedor manifesta seu exercício de fé e cura no presente, representa o modo como se conectam com seu passado.

A confluência das linhas de pesquisa de Tayane, Silvia e Danilo, os dois últimos colegas de departamento, foi possibilitada pela realização do “I Seminário Pós-abolição e História Pública da UFSJ”, em maio de 2019, nas dependências da UFSJ, em São João del Rei, organizada pela profa. Sílvia Bügger, Tayane Oliveira e outros membros do Projeto Passados Presentes. Nele emergiu a ideia de um esforço conjunto de identificação e pesquisa de lugares de memória negra em São João del Rei, tendo tal proposta sido feita pela profa. Sílvia em plena “Festa de Maio”, ao som dos tambores da Congada e Moçambique de Piedade do Rio Grande.

Adiado pela pandemia, em 2023 ambos os professores formalizaram o projeto que passou a ser desenvolvido no âmbito do Laboratório da Imagem e Som (Lis) da UFSJ. Ele deu origem a dois projetos de Iniciação Científica, desenvolvidos entre setembro de 2023 e setembro de 2024, sob edital da PROEN, em que a aluna Bruna Inês Carelli Mendes foi orientada pela profa. Sílvia Brügger e a aluna Giovana Guimarães Silva pelo prof. Danilo Ferretti. Tais iniciativas se integram ao projeto mais amplo, “Passados Presentes; patrimônios e memórias negras e afro-indígenas em Minas Gerais”, coordenado pela Profa. Hebe Mattos (UFJF) e pelo Prof. João Paulo Lopes (IFSUDESTEMG), aprovado na Chamada do CNPq no. 40/2022 – Projetos em Rede. Nele se consolidou a união do projeto apresentado pelos professores Sílvia e Danilo, com a pesquisa desenvolvida por Tayane Oliveira.

Neste projeto busca-se reverter a ausência de marcos memoriais no espaço público relativos à experiência negra na cidade. Surgida da exploração do ouro no séc XVIII, São João del Rei recebeu intensa população de africanos escravizados por mais de dois séculos, que, juntamente a seus descendentes, foram e são agentes imprescindíveis da história da cidade. Desde os anos 1920, difundiu-se uma imagem nacional de São João del Rei como “cidade histórica”, mas pouquíssimos são os marcos espaciais do passado que tornam visível a atuação da população negra sanjoanense. Este projeto de extensão visa a pesquisa, a difusão de seus resultados e a futura marcação pública de tais lugares como uma política de reparação simbólica diante da violência da escravidão e suas heranças, como o racismo e a relativa invisibilidade da experiência de negras e negros. Os projetos de Iniciação Científica citados se dedicaram à pesquisa bibliográfica e documental que resultaram na elaboração de verbetes informativos referentes a um total de 16 lugares de memória negra na cidade. São eles: Tenda de Umbanda Pai Joaquim de Angola; Associação Afro Brasileira Casa do Tesouro (Egbe Ilê Omidewa Asé Igbolayo); Terreiro Ilê Axé Omolocô Ti Oxóssi Ogbani; Ilê Axé Omin Inã Opará Oju Aganju; Ilê Asé Omin Insaba Dilé; Irmandade de Nossa Senhora do Rosário; Confraria de São Gonçalo Garcia; Pelourinho; Morro da Forca; Grêmio Recreativo Escola de Samba Bate-Paus; Orquestra Lyra Sanjoanense; Orquestra Ribeiro Bastos; Banda Theodoro de Faria; Grupo de Inculturação Afrodescendentes Raízes da Terra; Festa e capela do Rosário do Bairro São Dimas e respectivo catopé; Festa do Divino Espírito Santo; Congado e Catopé São Benedito e São Sebastião.  A eles foram adicionados os verbetes elaborados  por Tayane Oliveira, a saber: Benzedeiras e benzedores; benzeduras e benzimentos; Quebranto; Cobreiro; Aguamento; Coser jeito; Ventre-virado. Tais verbetes serão disponibilizados para consulta livre no site do projeto “Passados Presentes”.

O tratamento destes lugares de memória negra permite a realização de alguns deslocamentos gerais na forma como se configura a autoidentificação, a memória e a história oficial sanjoanense. Para uma cidade que se vê, desde pelo menos os anos 1930, como “a cidade dos sinos”, cuja autoimagem é marcada fortemente pela centralidade do catolicismo, com destaque para sua modalidade barroca, os verbetes permitem, primeiramente, ir além de tal identificação, trazendo ao primeiro plano a presença de manifestações religiosas de matriz africana tradicionalmente invisibilizadas. Tais são os casos dos verbetes sobre a Tenda de Umbanda Pai Joaquim de Angola; Egbe Ilê Omidewa Asé Igbolayo; Ilê Axé Omolocô Ti Oxóssi Ogbani; Ilê Axé Omin Inã Opará Oju Aganju; Ilê Asé Omin Insaba Dilé. Todos indicam que a “cidade dos sinos” é também a cidade dos atabaques e que a vida religiosa de São João del Rei, há tempos, é mais complexa e diversa que um cenário de exclusivo catolicismo. 

Os lugares de memória negra pesquisados permitem também reconsiderar a natureza dessa própria tradição católica e barroca local. Eles o fazem ao destacar, no interior deste universo, o protagonismo negro, marcado por maior diversidade étnica, apropriações simbólicas criativas e resistências às restrições sociais e devocionais que lhes eram impostas, conforme atestado pelos verbetes sobre a Irmandade do Rosário e a “Nobre Nação Benguela”, a Confraria de São Gonçalo Garcia e, tratando de manifestações mais recentes, da Festa do Divino Espírito Santo, do Congado e Catopé São Benedito e São Sebastião e da Festa e Capela do Rosário do bairro São Dimas. Por esses verbetes indicamos que a cultura do barroco, que marca tão fortemente a autoidentificação sanjoanense, tem sua compreensão amputada se não considerar as manifestações do catolicismo negro que a constitui e complexifica. Ela têm nos africanos e seus descendentes agentes centrais, tanto no passado das irmandades quanto na recriação presente feita nas festas, congados e catopés dos bairros populares. Em vários casos tais manifestações populares estabelecem um diálogo intenso entre as práticas católicas tradicionais e as religiões de matriz africana, destacando aí o protagonismo de mulheres negras, conforme atestam, além de alguns terreiros, das festas e congados citados, também os verbetes sobre as práticas de benzedura difundidas na cidade. 

Outro elemento da autoimagem sanjoanense consolidada que os lugares de memória negra permitem redimensionar é aquele que apresenta a cidade como “berço da liberdade”, “Terra de Livres”. Tal visão, intensificada no período republicano, quando trata do passado local destaca com quase exclusividade a relação da cidade como palco da Inconfidência Mineira, valoriza personagens a ela ligados (Bárbara Heliodora, Alvarenga Peixoto) e tem seu ponto alto na reivindicação de ser lugar de nascimento de Tiradentes, figura central tornada herói em âmbito nacional. Tal visão do passado local se estende até a identificação do ex-presidente eleito Tancredo Neves como continuador, no passado mais recente, dos valores de liberdade dos Inconfidentes. Os verbetes sobre o Pelourinho e o Morro da Forca contrastam com essa visão parcial e lembram que a liberdade não foi atributo de todos. Eles recordam o quanto a violência da escravidão marcou a história de São João del Rei e de Minas Gerais, importantes centros escravistas até a década de 1880. Indicam também o processo complexo de transmissão da memória da escravidão na cidade, com suas ressignificações e apagamentos.

Alguns dos lugares de memória negra pesquisados permitem, por fim, traçar a participação criativa de negras e negros na busca de sua liberdade e cidadania, muitas vezes por meio da atuação cultural. Neste ponto, eles ressignificam outro traço de autoidentificação local, que apresenta São João del Rei como “cidade da música”. Os verbetes sobre as orquestras Lira Sanjoanense, Ribeiro Bastos e a banda Theodoro de Faria reforçam o reconhecimento, consolidado desde pelo menos a década de 1970, da centralidade de afrodescendentes na dinâmica musical da que projetou a cidade, desde o século XIX, como “centro de civilização” e cultura. Indicam a presença negra em instituições onde nem sempre tal presença foi reconhecida, como na orquestra Ribeiro Bastos e, em menor escala, na banda Theodoro de Faria e no Grêmio Recreativo Escola de Samba Bate-Paus, a mais antiga agremiação carnavalesca da cidade. Indicam os modos pelos quais a produção cultural foi meio importante de reconhecimento cultural e inserção social de negros na cidade. Neste processo destaca-se o verbete sobre o Grupo de Inculturação Afrodescendentes Raízes da Terra, em que a união da ação cultural com a reivindicação direta por direitos da coletividade negra atinge patamar inédito. 

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